terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O que carregamos?????


Hoje discutimos as tensões e contradições  do fazer “arte”. O estado de alerta para o presente,  que não é apenas uma necessidade ontológica,  é um desafio para um momento de pouca reflexão- nos quais a arte também participa, e, mesmo provoca.

Drummond, o poeta,  responde a esse desafio em sua obra. Poeta debruçado sobre as indagações da função da poesia no mundo; volta-se para a questão anterior à natureza e da essência da poesia. Como o pintor no seu processo de criação, e se indaga o que vêm antes desse pintar,  o que se carrega?

A arte de seu poema nos faz percorrer esse caminho, quando retira das coisas do esquecimento, dá-lhes forma, cor, tato e vértebra; escava sua argila; revelando/ocultando e desacreditando nas evidências em favor do jogo do “claro enigma”, que de luz e sombras  inscreve a imagem em movimento.

Este olhar que reveste-se de outros olhares: de presença-ausências,  ocultando ou revelando o seu objeto “coisa”: “ o que afinal carregamos” .)

“O tempo dilato do sensível no extraordinário, da ordem do incomum. Toda função artística opera tangenciando o tema ( que é sempre artifício), o que importa neste fazer sempre é o espanto” ( Sergio Fingermamm).

Assim é preciso ler o poema:

Carrego comigo

Carrego comigo

Há dezenas de anos
Há centenas de anos
O pequeno embrulho.

Serão duas cartas?
Será uma flor?
Será um retrato?
Um lenço talvez?

Já não me recordo
Onde o encontrei.
Se foi um presente
Ou se foi furtado.

Se os anjos desceram
Trazendo-o nas mãos,
Se boiava no rio,
Se pairava no ar.

Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém
Ou se algo contém,
Nunca saberei

Como poderia
Tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio
E também tão quente.

Ele arde nas mãos,
É doce ao meu tato.
Pronto me fascina
E me deixa triste.

Guardar um segredo
Em si e consigo,
Não querer sabê-lo
Ou querer demais.


Guardar um segredo
De seus próprios olhos,
Por baixo do sono,
Atrás da lembrança.


A boca experiente
Saúda os amigos.
Mão aperta mão,
Peito se dilata.

Vem do mar o apelo,
Vêm das coisas gritos.
O mundo te chama:
Carlos!  Não respondes?

Quero responder.
A rua infinita
Vai além do mar.
Quero caminhar.

Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
De jogá-lo ao fundo
Da primeira vala.

Ou talvez queimá-lo:
Cinzas se dispersam
E não fica sombra
Sequer, nem remorso.

Ai, fardo sutil
Que antes me carregas
Do que és carregado,
Para onde me levas?


Por que não me dizes
A palavra dura
Oculta em teu seio,
Carga intolerável?


Seguir-te submisso
Por tanto caminho
Sem saber de ti
Senão que te sigo.

Se agora te abrisses
E te revelasses
Mesmo em forma de erro,
Que alívio seria!


Mas ficas fechado.
Carrego-te à noite
Se vou para o baile.
De manhã te levo

Para a escura fábrica
De negro subúrbio.
És , de fato,  amigo
Secreto e evidente.

Perder-te seria
Perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre
Mas levo uma coisa.

Não sei o que seja.
Eu não o escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.


Não estou vazio,
Mas estou sozinho,
Pois anda comigo

Algo indescritível.





Carlos  Drummond de Andrade.





Um comentário:

  1. As indagações sáo parte de uma reflexão. Possuem autonomia, apresentada ao sentir como usufruto, no repouso do dia, onde pensamentos vão e vem., reproduzindo..... Tentando reproduzir ....

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