domingo, 1 de abril de 2012

Alberto Giacometti












SÓ SEI O QUE VEJO, TRABALHANDO 


  Alberto Giacometti 

Trabalho até ao último minuto. Faço e refaço as coisas durante meses, mas termino-as em poucas horas. O que me move não é o desejo de trabalhar, mas sim o de entender o que quero fazer… e depois acabar o mais depressa possível.
 Talvez eu seja um falso escultor e um falso pintor. 
 A princípio, quando estava na Grande Chaumière (n.t.: academia de arte, em Paris, que teve grande reputação no início do século XX), sentia-me cerceado pela técnica: trabalhava segundo perfis e atendendo à iluminação. Mas assim que comecei a pintar à minha vontade, nunca mais me ralei com a luz.
 Em pintura temos de ter a luz em conta, se usarmos cores puras. Mas se pintarmos em tons de cinza e ocre, como eu, a iluminação pode mudar, que não afecta a pintura. A electricidade não me incomoda. É frequente trabalhar (pintar ou esculpir) à noite. É certo que não o faço de propósito. Talvez seja apenas porque à noite há mais sossego. De qualquer maneira, e independentemente da iluminação, as coisas deveriam parecer sempre bem. Aliás, seja de noite ou de dia, o que me interessa é o desenho. É ele que me fornece as formas.
O domínio do desenho deveria permitir-nos realizar todas as pinturas e esculturas que quiséssemos. Na verdade, as formas… nem sei o que isso quer dizer. A mim o que me interessa é o desenho. Antes da guerra, cheguei a fazer esculturas que se representavam apenas a si mesmas e que, a meu ver, saíam do domínio da escultura. Tiveram um certo sucesso. Mas esse sucesso acabou por me paralisar. Além disso, não me sentia à altura do papel que queriam que eu desempenhasse.
 E precisava de liberdade para poder trabalhar. 
Compreendi então que tinha de questionar tudo. E recomecei a trabalhar segundo a natureza – a fundo perdido. Trabalhava com modelos, mas de quanto fiz então, pouco resta. E, é claro, nem sequer pensava em expor. Trabalhei assim durante dez anos. Durante esse tempo, para sobreviver, fazia vasos, candeeiros, objectos decorativos, em colaboração com o meu irmão Diego e com o decorador Jean-Michel Frank. Trabalhando segundo a natureza, acabei a fazer esculturas minúsculas: três centímetros.
 Não era intencional. E não compreendia o que se passava. O trabalho começava grande e acabava pequeno. Só o minúsculo me parecia conforme. Mais tarde entendi: não conseguimos ver uma pessoa no seu conjunto a menos que se afaste e fique minúscula.
 Em 1945, queria conservar a dimensão grande. Ora, a meu pesar, as figuras tornavam-se delgadas. A razão era simples: quanto mais perto estamos de uma coisa, mais distorcida a vemos. No meu caso, a dimensão que encolhia era a largura. E contudo imaginava figuras que deveriam ser de tamanho natural, como as de Maillol, por exemplo. Mas notei o seguinte: na natureza, nunca vemos as coisas como Maillol as representa. 
De facto, ele não trabalhava segundo a natureza, mas segundo a escultura. Pelo contrário, as máscaras dos negros da Nova Guiné e da Oceânia, ou dos esquimós, que me parecem tão expressivas, que têm ar de ter sido inventadas, e que são planas – mostram-se muito mais conformes. O que eles faziam era representar o que viam, de perto, e de uma forma bem mais fiel do que acontece com uma cabeça greco-romana. Tudo isto para dizer que trabalhar de acordo com a natureza me levou a fazer exactamente o contrário do que tinha imaginado que iria fazer. E foi assim que a natureza se me tornou totalmente desconhecida. Quando vemos uma pessoa de perto, olhamo-la de baixo para cima e de cima para baixo, sem conseguirmos apreender a sua largura. Mas, à medida que nos afastamos, esta aumenta. E atingirá o ponto máximo quando a pessoa couber inteiramente no nosso campo visual. Mas, então, a figura será muito pequena. Há nisto um parentesco com a visão dos bizantinos, de Tintoreto, de Greco e de Cézanne, por exemplo. As suas figuras, em comparação com as figuras clássicas (Renascença), são alongadas. Ou assim nos parece, se aceitarmos que a visão clássica é a normal. Mas eu já não creio nisso. Não me parece que a visão clássica seja uma visão imediata e afectiva das coisas, mas antes a sua reconstituição racional. 
Os clássicos queriam compreender aquilo que viam. Agiam mais como sábios do que como pintores. A busca das leis da perspectiva, por Uccello, as dissecações e estudos anatómicos de Da Vinci provam-no. De facto, o que eles perseguiam não era uma visão do homem, mas uma compreensão do corpo humano. Por exemplo, as personagens que Ticiano pintou, pergunto-me sinceramente onde é que ele as poderá ter visto.
 O que não impediu que, a pouco e pouco, as obras dos clássicos – que representam a soma dos seus conhecimentos sobre a realidade e não uma visão desta – se tenham substituído à própria visão da realidade. É por isso que as obras de arte da Renascença são ainda hoje consideradas, pela maioria das pessoas, como as obras-primas da arte, isto é, as representações mais válidas da realidade.
 A importância de Cézanne advém do facto de ter sido o único a romper profundamente com esta visão. E é graças a ele que toda a visão da realidade é hoje questionada. Com efeito, ele abriu um precipício perante qual cada um tenta salvar-se como pode. Até os cubistas regressaram à visão clássica. Assumem-se como sucessores de Cézanne, mas estão mais interessados nos processos de Cézanne do que nos seus fins. Cézanne servia-se de cubos, cones e esferas para chegar à sua visão de uma maçã. Mas para os cubistas a maçã deixa de ser um fim, torna-se, pelo contrário, um pretexto para desenhar cubos, cones e esferas.
 E como era difícil manterem-se muito tempo nessa posição, viraram-se para Ingres, para os pompeianos e os impressionistas. Restam os factos novos que são a pintura e a escultura abstractas (e tudo o que se lhe aproxima, como Klee, Miró, Brancusi). Pergunto-me até que ponto a arte abstracta poderá ser a nossa representação mais válida da realidade.
 Entre uma escultura e um belo vaso grego, ou um vaso pré-dinástico egípcio, ou um vaso chinês (mais belo do que qualquer escultura) não há diferenças de qualidade. Um machado pré-histórico pode ser tão belo como uma escultura. Mas isso não impede que permaneça no plano dos utensílios, ao nível de todos os outros utensílios, dos outros machados menos belos.
 Foi-me proveitoso fazer objectos utilitários (candeeiros, vasos, lustres, apliques, mesas, etc.). Julguei que estava a perder tempo, mas na verdade ganhei com isso, porque aprendi a ver as coisas no seu lugar, no domínio a que pertencem.
 Em resumo, se as comparar às obras pré-históricas, parece-me que as esculturas modernas, (abstractas ou que tendem à abstracção) não “descendem” da primeira escultura que representa uma mulher, mas dos machados pré-históricos.
 E, assim sendo, passam de um domínio para o outro e tornam-se objectos. Ora, para mim, um objecto não é uma escultura. Uma escultura deve ser a representação de alguma coisa para além de si própria.
 E a escultura só me interessa, verdadeiramente, na medida em que me permite representar a minha visão do mundo exterior. Mais ainda – para mim, a escultura constitui o meio de conhecer essa visão. A tal ponto que só sei o que vejo, trabalhando. E quando pinto, é com o mesmo propósito.


 Entrevista publicada na revista Sueca "Konstrevy" e publicada na edição Francesa de 1993

Um comentário:

  1. Estava pintando quando , em um intervalo, vi teu email com a fala do Giacometti. Que boa reflexão para levar para o meu dia de trabalho!
    Obrigada. Beijos,
    Cristiane

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